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Polêmica em samba

Lendo o livro "Almanaque do Samba" de André Diniz, tomei conhecimento desta famosa polêmica musical entre dois grandes compositores de samba do Rio de Janeiro na época mais rica desse estilo musical: Noel Rosa (1910-1937) e Wilson Batista (1913-1968). Noel é mais que conhecido. Um gênio do samba e poeta magistral. Wilson, autor da música "O Bonde São Januário", também é sambista famoso e descreveu bem os costumes e o cotidiano do submundo carioca, a partir do convívio diário que tinha com o ambiente da Lapa e da Praça Tiradentes, e com seus personagens malandros e matreiros, prostitutas, cafetões e outras espécies desse tipos maginais.

Wilson Batista (esq.) e Noel Rosa (dir.)

Durante o duelo, ambos desafiantes se conhecerem, tornaram-se amigos e até viraram parceiros na música "Deixa de ser convencida". Uma disputa saudável foi, e trouxe bons frutos à música brasileira.

Vejamos e escutemos as músicas desta famosa polêmica:

Lenço no pescoço
(Autoria de Wilson Batista, de 1933)
Exaltou o modo de vida malandro de Noel.

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam
E você canta
E eu não dou

Cantada pelo autor, Wilson Batista

Rapaz folgado
(Autoria de Noel Rosa, de 1933)
Noel contestou o argumento de Wilson.

Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha

Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado

por Martinho da Vila e sua filha Mart'nália

Mocinho da Vila
(Autoria de Wilson Batista)
Wilson viu no embate uma boa oportunidade para ficar conhecido.

Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais
Se não quiser perder
Cuide do seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz
Injusto é seu comentário
Falar de malandro quem é otário
Mas malandro não se faz
Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu
cartaz

por Jorge Veiga

Feitiço da Vila
(Autoria de Noel Rosa e Vadico, de 1934)
Fora da polêmica, mas Noel depois incluiu (sem gravar) duas novas estrofes à canção provocando Wilson.

Quem nasce lá na Vila nem sequer vacila ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo

Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba
São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba

A Vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém que nos faz bem
Tendo nome de princesa transformou o samba
Num feitiço decente que prende a gente

O sol na Vila é triste, samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus, não venha agora
Que as morenas vão logo embora

Eu sei tudo que faço, sei por onde passo
Paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila!

Quem nasce pra sambar chora pra mamar
Em ritmo de samba
Lá não tem cadeado nos portões por que na vila
Não tem ladrão

por Rosa Passos

e pelo autor

Conversa fiada
(Autoria de Wilson Batista, de 1935)
Wilson devolve a provocação feita nos novos versos de Noel em Feitiço da Vila.

É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem
feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado
Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o
berço dos folgados
A lua essa noite demorou tanto
Assassinaram o samba
Veio daí o meu pranto

por Jorge Veiga

Palpite infeliz
(Autoria de Noel Rosa, de 1935)
A polêmica continua com Noel contra-atacando com uma pérola.

Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também

Fazer poema lá na vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?

A vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

por João Gilberto

Frankenstein da Vila
(Autoria de Wilson Batista, de 1936)
Wilson quis seguir na contenda mas com um sambinha fraco que nem mereceu resposta de Noel.

Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um
bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila
Todos reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
E depois não vá dizer
Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo

pelo próprio autor

Terra de Cego
(Autoria de Wilson Batista)
Esse samba foi o último e assim acabou a questão. Noel também não respondeu. Não precisava...

Perca a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão
Não deves apelar
Para uma briga na mão.
Em versos podes bem desacatar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar

por Jorge Veiga

Finalmente, o livro onde descobri essa antológica polêmica:

"Almanaque do Samba", de André Diniz
Editora Zahar

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